Um edifício de quatro andares desabou na madrugada do dia 3 de junho, na comunidade de Rio das Pedras, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, matando duas pessoas. A tragédia imediatamente lembrou a ocorrida há dois anos, quando 24 pessoas morreram após o desabamento de dois prédios residenciais irregulares na comunidade vizinha Muzema. Isso reacendeu o debate sobre a situação das edificações cariocas e o licenciamento declatório, pontos que orbitavam a discussão sobre o tema desde a edição da Resolução nº 64/2020[1] que versa sobre a classificação de risco no direito urbanístico para fins de desenvolver atividade econômica de “baixo risco”.
A medida emitida pelo Governo Federal em dezembro do ano passado pretendia submeter o direito urbanístico a uma classificação de risco que distorcia a ordem constitucional brasileira, além de permitir a flexibilização do licenciamento urbano nas cidades, em nome do princípio da liberdade econômica. O texto indicava valores-padrão que consideravam como construção de “baixo risco” obras de até 1.750 m², com máximo de três pavimentos.
Em nota divulgada em dezembro, a Comissão de Política Urbana do CAU/RJ repudiou a ideia contida na resolução[3] de que construções classificadas como de “baixo risco” possam ser dispensadas do licenciamento urbanístico prévio e da obtenção do “Habite-se”. De acordo com os membros da comissão, “tal medida é de extrema gravidade porque construir nas cidades não é algo que possa ser banalizado. Pressupõe responsabilidades dos proprietários, dos empreendedores, dos profissionais e, inclusive, do próprio poder público”, diz o documento.
A Resolução desconsidera o passivo da pobreza, além de mascarar a baixa qualidade da produção periférica da informalidade que se evidencia de forma inegável quando analisamos a Comunidade de Rio de Pedras e outras áreas vitimadas por este mesmo tipo de tragédia.
No 1° andar do prédio que desabou funcionava a Lan House de Natan Gomes de Souza, uma das vítimas fatais do desmoronamento. Os demais andares da edificação eram usados para promover o direito familiar de acesso à moradia, obtido por sacrifício e poupança popular que se esvai em acidentes deste tipo. O ponto nodal de toda aquela informalidade reinante produzida por milicianos, construtores de periferia e populares movidos pela lógica da necessidade é a progressiva procura por moradia adequada, justa e compatível com a demanda crescente, premida pelos aluguéis e pela ausência de políticas públicas que consagrem o acesso constitucional a este direito. Como participei de algumas reuniões no Ministério da Economia sobre a Resolução CGSIM nº 64 do órgão, posso afirmar que tudo indica que a Lan House de Natan seria licenciada automaticamente a fim de não inibir o exercício da livre iniciativa e da desobstrução do ambiente dos negócios que, salvo engano e de acordo com o atual governo, entrava o progresso da economia nacional e impede o investimento no Brasil.
Em nota recente proferida pelo IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, assinada por outras entidades, inclusive o IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil –, as entidades se mostram preocupadas com esta licenciosidade liberal. Por meio da nota, IBDU e IAB denunciam os caminhos trilhados por uma resolução que atribui muita força ao mercado e suas regras, trabalhando a tese de que o direito urbanístico atua como o maior empecilho ao livre mercado, o que justificaria a necessidade de simplificar o processo de regulação.
Na ausência de políticas públicas obrigatórias em uma sociedade atrasada e desigual, o que prevalece é o improviso e o abandono à própria sorte de brasileiros que só querem morar. Sabemos que neste hiato entre a necessidade e a formalidade, sob a lógica da livre iniciativa, reside também oportunismo, o que nos faz deduzir que a ele serve bem à Resolução 64, pois mascara a ausência nefasta do Estado em áreas pobres, como na comunidade de Rio de Pedras e outras tantas dos municípios brasileiros. Além de facilitar a ação das milícias na produção imobiliária periférica, sobre a qual não pesa qualquer tipo de fiscalização, sendo, portanto, compatível com a ampla cobertura que o licenciamento simplificado traria para este edifício em questão.
Falta política pública em todas as esferas de governo e o silêncio sobre isso é assustador. Aliado a isto, sobem os aluguéis e faltam empregos. Este dado hospeda grande parte dos estabelecimentos de uso misto que compõem o andar térreo de um mesmo modelo de edifício residencial de periferia – normalmente construído por um retirante nordestino que sobrevive na informalidade e sob a lógica da necessidade do morar dignamente – que poderiam ter licença de atendimento ao livre mercado como quer a Resolução 64.
Então, o que se espera que o Governo deva regular para a maioria dos domicílios periféricos: uma resolução de liberalidade econômica com licenciamento simplificado para uma economia claudicante, ou investimentos maciços em produção habitacional com uma atenção especial àqueles que desejam que a cidade oferte emprego, moradia, segurança e direito real à cidade? Fica no ar, ou nos escombros, a pergunta ainda sem resposta.
* Cláudia Pires é Arquiteta Urbanista, Colunista do #Discuta BH CBN, colaboradora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e da Rede BrCidades. O texto foi publicado pelo Site de Notícias GGN.
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