Dia da Consciência Negra. Por Luiz Antônio de Souza*

Hoje celebramos o dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, data nacional instituída por
lei, há uma década atrás. Uma data de celebração e mobilização, como tal dedicada a reflexão de todos
nós, de todas as matrizes étnicas, pois instiga que temas candentes como igualdade social, racismo e
discriminação, necessariamente, remetam a discussão dos povos africanos escravizados que
construíram as Américas. Particularmente, aqueles que atravessaram o Calunga Grande, em viagens
sem retorno para edificar o Brasil. O dia da Consciência Negra está articulado ao Ativismo pelo Fim da
Violência contra as Mulheres, portanto, impõem-se a necessidade de consciência e ação face a dupla
agressão: mulher e negra.

Há pouco menos de um ano abríamos um debate sobre as tensões entre a desigualdade de
gênero no campo da arquitetura. Além do mérito individual, o ser mulher arquiteta no enfrentamento
das desvantagens e dificuldades que se impõe, estão associadas as trágicas estruturas sociais
androcentricas nas quais estão inseridas. Não sabemos o que penou ao longo de sua formação e
carreira Lygia Gabriela Alves, a primeira mulher formada em arquitetura na Bahia, em 1936. Por razões
obvias, não sabemos qual seria a declaração racial da colega Lygia, contudo, é um importante marco
simbólico.

Sabemos que há uma forte vertente da política relacionada com a ideologia liberal baseada na
identidade e é bom lembrar da atomização que decorre da política identitária e mais ainda das
temeridades decorrentes da autorização identitária. Mas, independente desse importante aspecto, a
fluidez da discussão de gênero caminha no complexo universo do exercício profissional da arquitetura
vez que, como produto social, não pode estar fora da realidade da desigualdade no país, de direitos
subtraídos as vezes do direito à vida, direito à integridade física, e outros mais elementares.

Contudo, a mobilização em torno do dia da Consciência Negra impõe que nos
manifestemos sobre o “urbicídio” – a degradação acelerada da dimensão civilizatória da
cidade – e o que este fato implica junto aos segmentos da população de origem
afrodescendentes, boa parte desta sobrevivendo refugiados em aglomerados urbanos que por
uma provável desinformação são tituladas de “bairros”. Uma população que continua a
conviver escapando do iceberg da violência, no topo as perceptíveis e aquelas submersas a
violência cultura e a violência estrutural, esta última camuflada nas leis e ações. Cujos
princípios criam fantásticas desiguales no acesso aos serviços urbanos o que promove a
segregação sócio-étnico-espacial o amalgama das dimensões sociais e culturais da violência e
da discriminação contra a população negra.

Precisamos estar atentos ao buscar vislumbrar o que se chama “função social da
arquitetura” frente aos dados estarrecedores tais como a situação de extrema pobreza em que
vivem mais de 9 milhões de brasileiros entre zero a 14 anos, cuja renda domiciliar per capita
gira em torno de R$250,00 reais, valores de 2019. Essa maioria de crianças são
majoritariamente negras. Esse fato se agrava ainda mais pois muitas dessas crianças ficaram
órfão, pois seus parentes estão entre os mais de 612 mil mortos pela COVID19.

Estamos diante de uma onda, de uma guinada à direita conservadora, que reage de forma mais
comezinhas aos avanços liberais, sobretudo em pautas relacionadas às questões ou de disputas morais
atreladas à cor, sexo, orientação sexual, etnia, em deficiências, idiomas, sotaques, origem, entre
outras.

Esse dia de mobilização da Consciência Negra impõe, também, uma reflexão sobre a luta para
descolonizar a formação e os currículos universitários diante de uma arquitetura que ainda não foi
capaz de avistar o papel da mão negra que edificou o país. Ou que nunca se perguntou por que tão poucos negros nas escolas de arquitetura? Será que a arquitetura brasileira não precisa
mais de identidade? Ou a identidade da Diáspora Negra pode ser relegada a um segundo plano?

Como promover “Ações Afirmativas” na especificidade de uma formação socioeconômica
onde as minorias são maioria numérica, como ocorre no Brasil? Por que tem sido lenta e dispersa a
discussão sistemática do legado dos distintos aspectos da contribuição da cultura negra à produção da
arquitetura e da organização do espaço no Brasil? É provável que o contexto da produção teórica da
arquitetura entre nós evite temas desafiadores, mas é necessário enfrentarmos a questão, para que
não tenhamos que, em futuro próximo, nos mirarmos na produção intelectual que trata de realidade
como a dos Estados Unidos da América. Recentemente, Darrell W. Fields, professor do Departamento
de Arquitetura da Universidade de Berkeley estudioso na área de arquitetura e raça lançou um tratado
teórico Architecture in Black – Theory, Space and Appearance, onde examina a relação teórica entre
arquitetura, espaço e tempo na dimensão da negritude.

A historiadora da arquitetura Esther Choi, que estuda a relação entre profissão e desigualdade,
observa que “a arquitetura é incrivelmente neoliberal, e sua promoção criou uma relação de
vantagens entre o capital e o poder. Na maior das universidades se estuda a arquitetura do ponto de
vista do promotor (cliente), mas não da sua função social […]. Acho que há interesse em manter o
status quo, porque o arquiteto sente que depende do sistema. E o status quo é branco e masculino”.
Apesar dessa leitura, o MoMa de NY abrigou, no segundo semestre desse ano, a “Exposição
Reconstruções: Arquitetura e Identidade Negra”.

Em 1977, foram apresentados na SBPC dois trabalhos que problematizavam a questão do
negro e arquitetura. Em 1997, a partir de Salvador, a exposição Design Diáspora percorreu mais duas
capitais, Curitiba e Rio de Janeiro. Em 2006, o desafio foi a realização do Concurso Público Nacional de
Arquitetura para o Monumento aos Lanceiros Negros no Parque Farroupilha em Porto Alegre. Em
2014, foi lançado no Congresso da UIA, na África do Sul, o Concurso internacional para o Projeto para
o Museu Nacional Afro-Brasileiro de Cultura e Memória, a ser construído em Brasília. As publicações
“A mão Afro Brasileira”, “Para Nunca Esquecer. Negras Memórias/ Memorias Negras” e a “Histórias
Afro-Atlânticas”. Em 2018, a 154ª Reunião do COSU, aprova, por unanimidade, a Resolução
apresentada pelos Departamentos da BA, PE, RJ, SP, PR, RS, que sejam promovidas ações no âmbito
da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) e recomenda a utilização da identidade
visual da UNESCO relativo a esta comemoração. Esses constituem exemplos simbólicos, que podem
continuar a alimentar a reflexão de todos os dias da Consciência Negra.

Apreender a desaprender o racismo é uma tarefa urgente, quando a expectativa no mundo do
empreendedorismo, do “EUlofotes”e do não emprego estrutural é que a assistência técnica as famílias
de baixa renda , de maioria negra, possam contar com os serviços dos profissionais de arquitetura , o
que vai exigir destes um olhar sem suspeição, sem preconceito étnico-racial, num país como o nosso
celeiro das desigualdades sociais. “Numa sociedade racista, não adianta não ser racista, nós devemos ser antirracistas” – Angela Davis. 

*Luiz Antônio é presidente do IAB-BA.

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