João Paulo Charleaux
28 Nov 2016 (atualizado 28/Nov 15h54)
Foto: MANU DIAS/AGECM
Condomínio transformado em pivô de crise política reflete padrão de novas construções que colidem com preservação de patrimônio e reforçam ideia distorcida de modernidade, dizem especialistas ouvidos pelo ‘Nexo’.
A construção de um condomínio de luxo de 31 andares na orla de Salvador foi pivô da maior crise política enfrentada pelo governo desde que o presidente Michel Temer tomou posse de forma definitiva, no dia 31 de agosto.
A crise teve início depois que o então ministro da Cultura Marcelo Calero pediu demissão por não aceitar ser pressionado nos bastidores pelo então ministro-chefe da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima. Geddel queria ver aprovada a construção do condomínio La Vue, na capital baiana, onde possuía um apartamento avaliado em R$ 2,5 milhões.
A obra estava embargada por um laudo técnico do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão subordinado a Calero, na Cultura. Segundo o órgão, a construção alterava a “visibilidade e a ambiência” de construções dos séculos 16 e 17 na região. Por isso, não podia ser erguida tal como a planta original previa.
Calero também afirmou ter sido pressionado pelo próprio presidente da República, Michel Temer, que teria intercedido a favor do então titular da Secretaria de Governo. Dias depois, Geddel pediu demissão.
Além do laudo técnico do Iphan, contrário à construção, também o IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) entrou com uma ação civil pública contra o La Vue. O Nexo elaborou perguntas a dois especialistas do instituto para entender como esse episódio em particular dialoga com as tendências do urbanismo, da arquitetura e da exploração imobiliária no Brasil.
– Solange Araújo, mestre e doutora em arquitetura e urbanismo, presidente do Departamento Bahia do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil)
– Antônio Heliodório Sampaio, mestre em geografia e doutor em arquitetura e urbanismo, professor titular na Universidade Federal da Bahia e autor do parecer que deu base teórica e conceitual para a ação civil pública impetrada pelo IAB-BA
Para Sampaio e Araújo, que responderam às perguntas de forma conjunta e por escrito, “o discurso de ‘atrair investimentos’”, frequentemente associado a esses novos empreendimentos, “omite um objetivo que visa à mudança de um segmento de população – classe média ou pobre – por outra de maior renda.
Para tanto, a lógica comercial requer um novo padrão de moradia, o que supostamente elevaria a ‘qualidade do bairro’ ou da zona. Mas antes se ‘desqualifica’ uma área, para depois vir a ‘requalificação’, posta como algo inevitável”.
Para além das implicações políticas, quais as implicações urbanísticas, históricas e arquitetônicas envolvidas nesse embate entre o Iphan e o empreendimento de 31 andares no qual Geddel tinha um apartamento, em Salvador?
SOLANGE ARAÚJO E ANTÔNIO HELIODÓRIO SAMPAIO O edifício La Vue está inserido em uma área de entorno a edificações tombadas em nível federal e estadual, portanto submetida à legislação específica.
O não atendimento à citada legislação fere o princípio da adequada legibilidade do bem tombado, altera consideravelmente o frontispício/silhueta da cidade vista desde a Baía de Todos os Santos e cria grave precedente para que outras edificações, desse mesmo porte, venham a se instalar na área, descaracterizando totalmente a paisagem e a visibilidade dos bens tombados, especificamente o outeiro e Igreja de Santo Antônio da Barra, os Fortes, além do Cemitério dos Ingleses.
O La Vue criaria, para si, um destaque grotesco em detrimento de todo o casario e de edifícios de pequeno porte, existentes na área de entorno.
Esse é um episódio isolado, ou ele reflete um tipo de disputa recorrente no país, e mais precisamente em cidades históricas, como Salvador?
SOLANGE ARAÚJO E ANTÔNIO HELIODÓRIO SAMPAIO Isso pode ser percebido em todo o Brasil, com a recorrente substituição de edificações – residenciais ou não, antigas ou mais recentes – por torres, em geral destinadas a empreendimentos luxuosos.
Em Salvador não é diferente. Além dos problemas já apontados pelo Iphan, o edifício La Vue ocupa um lote onde antes havia uma edificação residencial de dois pavimentos. Essa edificação era comum, não tinha uma identificação específica. A construção não era tombada, mas ocupava um espaço cujo entorno era preservado.
O La Vue não é o único caso. Há ainda a Mansão Wildberger – nome dado a um conjunto residencial que foi construído sobre o antigo Casarão Wildberger, uma construção do século 19. Esse casarão era tombado, mas, mesmo assim foi destruído para a construção do conjunto. A Mansão Wildberger é ainda maior que o La Vue, possui 35 pavimentos.
Tem também o caso do Residencial Marina O’Clock, que foi erguido sobre o antigo casarão que abrigou o hotel e a boate O’Clock. Assim como no caso da edificação do La Vue, o casarão não era tombado, mas o entorno possuía equipamentos tombados.
Por fim, há o problema do Costa España, que ocupa parte da área do Clube Espanhol de Salvador, que pertence à Marinha.
Mas a lei não existe para regular isso?
SOLANGE ARAÚJO E ANTÔNIO HELIODÓRIO SAMPAIO Em Salvador, parte da inadequação vem da própria legislação. O PDDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) e a LOUOS (Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo) foram feitos ao arrepio da opinião das entidades de classe e da população.
Outra parte do problema vem da desobediência à legislação, uma desobediência oriunda dos processos políticos decisórios, numa democracia frágil, em que o Estado se submete aos desígnios e caprichos da especulação imobiliária, como nos casos mencionados da construção do La Vue, da Marina O’Clock e do Costa España.
O termo “modernização” é apresentado como sinônimo de melhoria. O “moderno” é sempre melhor? O que é exatamente o “moderno”?
SOLANGE ARAÚJO E ANTÔNIO HELIODÓRIO SAMPAIO O termo “modernização”, usado livremente pelo senso comum, é visto como algo bom e inquestionável. Entretanto, no âmbito da arquitetura e do urbanismo contemporâneo, é possível observar vários tipos de “modernizações” – desde aquelas obras adequadas ao contexto histórico, físico e territorial a que pertencem, respeitando as paisagens natural e construída, até aquelas intervenções inadequadas ao ambiente e suas pré-existências com impactos negativos na estrutura urbana, fruto de uma ‘modernização predadora’.
Já a questão do que é “moderno” remete a uma discussão antiga, que ora classifica o “moderno como um movimento” em reação a um passado que se queria superar (como estilos, técnicas ou até ideologias conservadoras), ora como tudo que é contemporâneo a uma dada época.
Logo, é um termo até certo ponto ambíguo e, quando usado sem o devido rigor teórico, mais confunde que ajuda a esclarecer ao leigo o que é ou não o “moderno”.
Por exemplo, o que era considerado moderno nos anos 1920 ou 1930 não equivale ao que se enquadra como moderno nos meados e no final do século 20, e muito menos no século 21.
Um equívoco é pensar que o moderno se confunde com um estilo, pois cada época tem um espaço-tempo cuja especificidade se manifesta e emerge de uma formação social, econômica e política específica.
Na atualidade os consensos teóricos se esvaem nas práticas arquitetônicas em múltiplas manifestações, que vão das mais respeitosas ao meio ambiente, às mais nefastas, com impactos irreversíveis sobre a história e a geografia das cidades – como nos exemplos do La Vue, da Marina O’Clock e do Costa España, todos em Salvador.
A questão da memória urbana, não é só uma questão de história vista como passado a ser preservado, mas do que se faz no presente sinalizando um futuro de cidade, que se imagina melhor que a atual, que é gerida apenas como “janela de negócios” ou “caderno de oportunidades”.
O que a arquitetura está entregando hoje no Brasil terá relevância histórica no futuro? Ou a marca das construções de hoje é justamente seu caráter prático e efêmero?
SOLANGE ARAÚJO E ANTÔNIO HELIODÓRIO SAMPAIO Um olhar mais atento ao que se faz no Brasil hoje, em termos de arquitetura e de urbanismo, sobretudo nos Centros e Sítios Históricos, tombados ou não, apenas replicamos um padrão internacional de ver a cidade como uma mercadoria, ou um grande negócio.
Daí emerge uma tensão cujo mote é a luta pela não remoção dos moradores e sua substituição por outras classes de renda mais abastadas. É neste contexto que a legislação urbana vem sendo modificada, com zoneamentos flexíveis, para que os projetos ditos de “requalificação urbana” proliferem.
O discurso de ‘atrair investimentos’ omite um objetivo que visa à mudança de um segmento de população – classe média ou pobre – por outra de maior renda. Para tanto, a lógica comercial requer um novo padrão de moradia, o que supostamente elevaria a ‘qualidade do bairro’ ou da zona. Mas antes se ‘desqualifica’ uma área, para depois vir a ‘requalificação’, posta como algo inevitável.
Portanto, a verticalização dos bairros tradicionais (históricos) é um fenômeno a ser visto em detalhe, em cada trecho do tecido urbano, sobretudo quando destroem as pré-existências, e lugares significativos, em nome do “turismo”, do “desenvolvimento”, ou do jargão mais recente em tempos de crise: para “gerar emprego e renda”; e verticalizar entre nós passou a ser a única solução.
A questão continua sendo a de sempre, o que pode e deve mudar numa paisagem urbana, e o que deve permanecer como registro de uma história, de uma formação social, de uma identidade e memória da cidade.
Não é correto generalizar, pois existem intervenções efêmeras boas, medianas e ruins, bem como edificações permanentes boas, medianas e ruins, neste sentido discutir a qualidade ou o grau de adequação/inadequação de um projeto ao contexto a que pertence, ouvindo os moradores e não só o mercado imobiliário é o que interessa hoje, e sempre.
Fonte: Jornal Nexo
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/28/O-que-o-pr%C3%A9dio-do-apartamento-de-Geddel-revela-sobre-as-escolhas-da-arquitetura